A Transfiguração tem um
significado muito singular: revelar aos apóstolos que a passagem pela morte era
temporária e a ela sucederia o fato impensável da ressurreição. Isso porque
Jesus de Nazaré era o Filho de Deus e tinha o “poder de dar e retomar a vida” . Mas, o que é a Transfiguração? Não é uma
aparição, podemos dizer inicialmente. Podemos, contudo, afirmar tratar-se
de um parecer sob outra forma, senão a forma costumeira que Jesus aparecia aos
seus discípulos. Ele não apareceu no Tabor, mas tomou outra figura. Como o
fenômeno é inteiramente desconhecido no Antigo Testamento, não há uma palavra
própria para descrevê-lo ao entendimento humano. Assim, os Evangelistas foram
buscar uma nova terminologia usada na linguagem pagã, quando falavam de deuses
que não assumiam a forma humana. No Monte Tabor, não temos um outro Jesus; é o mesmo
Jesus de Nazaré que assume uma forma divina. Embora não possamos dizer que Deus
tenha uma outra forma, o Evangelista teve de ater-se ao linguajar e à
compreensão humana. Ainda que o Antigo Testamento não conte com transfigurações
em sua linguagem, os termos com que se descreve a de Jesus são todos
desconhecidos ao descrever a divindade: luz resplandecente, vestes brancas,
alto de um monte, nuvem da qual sai uma voz.
A Transfiguração confirma a fé dos Apóstolos, manifestada por Pedro em
Cesareia de Filipe, e os ajuda a ultrapassar a sua oposição à perspectiva da
paixão anunciada por Jesus. Quem quiser Seu discípulo, terá de participar nos
seus sofrimentos . A Transfiguração é um primeiro resplendor da glória divina
do Filho, chamado a ser Servo sofredor para salvação dos homens. Na oração,
Jesus transfigura-se e deixa entrever a sua identidade sobrenatural. Moisés e
Elias são protagonistas de um êxodo muito diferente nas circunstâncias, mas
idêntico na motivação: a fidelidade absoluta a Deus. A luz da Transfiguração
clarifica interiormente o seu caminho terreno. Quando a visão parece estar a
terminar, Pedro como que tenta parar o tempo. É, então, envolvido com os
companheiros pela nuvem. É a nuvem da presença de Deus, do mistério que se
revela permanecendo incognoscível. Mas Pedro, Tiago e João recebem dele a luz
mais resplandecente: a voz divina proclama a identidade Jesus, Filho e Servo
sofredor . Jesus manda os seus
discípulos rezar. Hoje, toma à parte os seus prediletos, Pedro, Tiago e João,
para os fazer rezar mais longa e intimamente. Estes três representam
particularmente os pontífices, os religiosos, as almas chamadas à perfeição.
Para rezar Jesus gosta da solidão, a montanha onde reina a paz, a calma, onde
pode ver-se a grandeza da obra divina sob o céu estrelado durante as belas
noites do Oriente. A transfiguração é uma visão do céu. É uma graça
extraordinária para os três apóstolos. Não nos devemos agarrar às graças
extraordinárias que são por vezes o fruto da contemplação. Pedro agarra-se a
isso. Engana-se. Queria ficar lá: “Façamos três tendas”, diz. Não sabia o que
dizia. A visão desaparece numa nuvem. Há aqui uma lição para nós.
Entreguemo-nos à oração habitual, à contemplação. Não desejemos as graças
extraordinárias. Se vierem, não nos agarremos a elas. Os frutos desta festa
são, em primeiro lugar, o crescimento da fé. Os apóstolos testemunham-nos que
viram a glória do Salvador. “Não são fábulas que vos contamos, diz São Pedro ,
fomos testemunhas do poder e da glória do Redentor. Ouvimos a voz do céu sobre
a montanha gritando-nos no meio dos esplendores da transfiguração: É o meu
Filho bem-amado, escutai-o”. São Paulo encoraja a nossa esperança recordando a
lembrança da glória do salvador manifestada na transfiguração e na ascensão:
“Veremos a glória face a face, diz, e seremos transfigurados à sua semelhança”.
– Esperamos o Salvador, Nosso Senhor Jesus Cristo, que transformará o nosso
corpo terrestre e o tornará semelhante ao seu corpo glorioso” . Mas este
mistério é sobretudo próprio para aumentar o nosso amor por Jesus. Nosso Senhor
manifestou-nos naquele dia toda a sua beleza. O seu rosto era resplandecente
como o sol. Os apóstolos, testemunhas da transfiguração, estavam totalmente
inebriados de amor e de alegria. “Que bom é estar aqui”, dizia São Pedro.
“Façamos aqui a nossa tenda”. “A transfiguração não é uma mudança de Jesus, mas
é a revelação da sua divindade, a íntima compenetração do seu ser com Deus, que
se torna pura luz”. Uma nuvem luminosa
os cobre, lembrando-lhes a nuvem gloriosa que enchia a Tenda da Reunião quando
Deus falava com Moisés e diz: “Este é o meu Filho amado, ouvi-o!” Cristo
é o amado. N’Ele nós também somos filhos amados. Ele é o servo obediente, “até
a morte”, e nós somos chamados a ser também servos obedientes, que sabem
escutar a voz do seu Senhor, do seu Mestre. Ouvir o Cristo é o caminho para a
glória. Não é à toa que São Bento começa a sua Regula Monachorum convidando-os
com o termo Obsculta… Nós o ouvimos na Palavra da Escritura Sagrada; nós o
ouvimos na Tradição da Igreja; nós o ouvimos quando os nossos pastores nos
conduzem e nos dirigem uma Palavra que nos orienta e guia até o mesmo Cristo;
nós o ouvimos quando aceitamos entrar na intimidade do nosso quarto, do quarto
do nosso coração, onde, no dizer de Santo Inácio de Antioquia “existe uma
água viva e murmurante que me diz: Vem para o Pai!” As vestes de Cristo ficaram “brancas
como a luz”. Marcos ressalta que as vestes de Cristo ficaram brancas de tal
forma que nenhuma lavadeira poderia tê-las alvejado daquela forma. A brancura
das vestes de Cristo não era uma brancura terrena, mas uma cor do céu.
Cristo apareceu aos discípulos revestido de luz, porque Ele é a luz, nos vai
dizer São João, talvez como fruto dessa experiência. Cristo alvejou as nossas
vestes no seu sangue. O sangue d’Aquele que é luz alvejou as nossas vestes. A
nós cabe agora clamar constantemente o Espírito para vivermos de acordo com a
veste nova recebida. A Transfiguração
ocorreu em um monte, local para os judeus de contato com a Divindade. As vestes
brancas simbolizam a eternidade, o pertencer ao céu e ser santo como Deus é
santo. Por isso, o anjo da ressurreição estará vestido de vestes brancas. A
Santa Igreja conservou a figura da veste branca e a impõe ao recém-batizado,
para simbolizar a pertença à família de Deus e expressar que o sagrado Batismo
devolveu à criatura a santidade que a coloca em comunhão com Deus, conforme nos
ensinou São Paulo: “Passais por uma transformação espiritual de vossa
mentalidade e vos revestis do homem novo, criado segundo Deus na justiça e
verdadeira santidade” . Tudo isso levando-se para a santidade e para a comunhão
íntima com Deus e com a comunidade. Outro
símbolo da Transfiguração é a luz. Deus mora na luz inacessível, conforme nos
ensina a IV Oração Eucarística, tão rica de significados teológicos. São João
nos ensina: “Deus é Luz” . Jesus de Nazaré definiu-se como sendo a encarnação da
luz . A nuvem, simboliza a presença de
Deus, como a manifestação no Monte Sinai e a aliança entre Deus e o povo. Isaías
cantava que a nuvem é o carro de Deus . Quando Jesus subir ao céu, em certo
momento, será envolto por uma nuvem. Ora, o Tabor tem muito do significado do
Sinai. Cristo estava para dar à luz um novo povo, uma nova e definitiva
aliança, um novo Testamento por meio do sangue derramado na cruz. Como vimos, a
Transfiguração tem todo um sentido pascal. E a Páscoa tem um sentido de
recriação. Para o angélico Santo Tomás
de Aquino, o Tabor tem a presença do Espírito Santo: “A Trindade inteira
apareceu: o Pai, na voz; o Filho, no homem; o Espírito, na nuvem luminosa”. A
voz do Pai, saída da nuvem, é o centro do episódio: “Este é meu filho
bem-amado. Escutai o que Ele diz!” . Aqui está uma clara afirmação da filiação
divina de Jesus, de sua autoridade de Filho de Deus, de sua natureza divina.
Por isso Ele tem palavras de vida eterna.
Para nos transfigurarmos,
devemos nos revestirmos de Cristo para sermos como Ele é. É muito importante termos presente que a
festa de hoje nos sinaliza que, pelo caminho do sofrimento e da cruz,
chegaremos à ressurreição. São Pedro nos representa a todos, quando pretendemos
viver e anunciar a alegria da ressurreição, sem passar pela generosa entrega e
pela morte. Também nós preferimos montar a nossa tenda na montanha. Mas é
preciso ter a experiência mística e coletiva da missão, do anúncio do Evangelho.
Não podemos ficar na “fresca” da contemplação da Montanha, mas descer para o
dia a dia da vida missionária. Nesta
reflexão sobre a Transfiguração, torna-se oportuno atermo-nos a alguns
aspectos. Primeiro, o discípulo reza unindo a oração à realidade do dia-a-dia,
principalmente pedindo a força de Deus para vencer os obstáculos, pedindo as
forças que vêm de Deus. Depois, somos convidados a dar espaço e oportunidade a
novas experiências. Para isso é preciso rezar e amar, conforme nos ensina São
João Maria Vianney no silêncio do confessionário e na acolhida da partilha de
seu ministério. A experiência do Monte
Tabor, a Transfiguração do Senhor, deu força aos apóstolos para aguentarem a
experiência amarga do Monte Calvário. São Marcos relatou a história para fortalecer
a fé vacilante dos membros de sua comunidade, quarenta anos depois do
acontecido. O texto os convidou a renovar a fé em Jesus e na sua Palavra. O
texto, ainda hoje, convida-nos a essa mesma atitude, conforme o convite de Deus
Pai: “Este é o meu Filho amado. Escutem o que ele diz!” O convite de ontem vale
hoje também para nós. Mais do que um convite é uma convocação para a missão e
para o engajamento na realidade concreta da missão. Contemplando hoje a face de Jesus
transfigurado e escutando o que ele diz, encontraremos força para passar
suportar os sofrimentos e dificuldades da vida, até o dia em que poderemos
contemplá-Lo na glória do Pai, realização definitiva da aliança e das
promessas. Que Deus nos ajude e que as
palavras finais do saudoso amigo Cardeal Dom Lucas Moreira Neves, OP, nos
interpele: “Que eu possa sempre ver o rosto sereno e radioso do meu Cristo”. E
eu completo: sempre na realidade da oração e do amor no irmão que vive e
convive conosco no cotidiano. Amém!
Nenhum comentário:
Postar um comentário